CONTOS À LUZ DA CANDEIA

José Gomes Quadrado

Chamo-lhes assim, porque foram aprendidos muito antes da electrificação chegar às Mós, quando ainda se não imaginava o aparecimento da televisão, cuja excessiva utilização haveria de contribuir, decisivamente, para o desaparecimento dos serões, dos diálogos e das situações que privilegiavam os contactos entre gerações. E passadas muitas décadas, permanece em muitos de nós alguma nostalgia (sem certos saudosismos) duma forma de vida em extinção e cuja memória tenho procurado manter através do registo escrito, pois algumas recordações da minha infância permanecem tão vivas que às vezes parece que aconteceram ontem.
Aqui prevalece, acima de tudo, a intenção de demonstrar a importância das relações entre avós e netos, quando aqueles sabem, podem ou se dispõem a desempenhar três funções fundamentais: entreter, rectificar, explicar.
Os avós enquanto educadores, são, em certos casos, os educadores ideais, quando substitutos dos pais, sobretudo, quando reunidas aquelas três condições, eles funcionam como "factores" de transmissão cultural, como depositários da história familiar e como elo da ligação entre o passado e o futuro.

UM SERÃO NA CASA D'AVÓ

Ó Portugal da minha infância
Não sei que é, amo-te a distância,
Amo-te mais, quando estou só...
Qual de vós teve na Vida
Uma jornada parecida,
Ou assim, como eu, uma Avó? (**)
Naquela casinha com paredes de xisto, situada no "Fundo do Povo", paralela à capela de Santo António, existia uma acolhedora cozinha com uma grande lareira, onde nas noites frias se mantinha um borralho vivo, em torno do qual se sentavam a avó e (quase sempre) três netos órfãos de mãe. E à luz da candeia, pendurada nas "lares" tisnadas, a avó, ao mesmo tempo que "trabalhava na meia", desfiava um sem número de contos, de lendas, de mil histórias de proveito e de exemplo. Vou deixar-vos uma resenha de um serão que ali teria lugar, numa noite de inverno, dos anos 40, do século passado.
Acabada a ceia, a avó e a neta vão para o louceiro. E porque é tempo das geadas, o neto mais velho, sentado no banco grande, de costas para o canto da lenha, vai pondo mais um cavaco e uns guicinhos para manter acesa a chama na lareira. O neto mais novo anda numa dobadoira, sem ter paragem nem haver meio de se calar. Agarra as orelhas ao primo (e este as dele) e ambos entoam a cantilena:

"Lagarto pintado, quem te pintou?
Foi uma velha que aqui passou.
No tempo d'arada, fazia poeira,
Puxa lagarta por esta orelheira!...

O neto (ainda criança) desafia o primo para outra lengalenga:

"-Vamos ao moinho?
- Vamos.
- Levamos uma cabacinha de vinho
- Levamos.
- Penduramo-la numa carrasqueirinha? - Penduramos.
- Atiramos-lhe com bogalhinhos?
- Atiramos.
- Aquele que soprar mais é galo!
- E o que soprar menos, é pita borrada!
Ffffffff.!!!...
Pita borrada! Pita borrada!"

Meio sufocado pelo mais poderoso sopro do primo, o pequeno dá-se por vencido e ouve a prima rosnar:
- Bem feito!
Com a avó ausente na cosinha, o pequeno replica:
- Cála-te lá! "Onde cantam galos, não cantam galinhas". As raparigas só dizem chochices...
- Olha agora, o fedelho! Já a "formiga tem catarro..." - replica a prima.
O neto mais velho repreende a irmã "por se meter onde não era chamada". E ela, sacudindo as mãos molhadas sobre ambos, borrifa-os e depois canta:
- "Estes rapazes d'agora,
São poucos mas são valentes;
Trazem a pia dos porcos,
Atravessada nos dentes."
Os dois primos protestam. E a ordem só é restabelecida com o regresso da avó, que vem sentar-se, sobre as pernas em cruz, na sua esteira, para "trabalhar na meia". O rapazinho passa a cirandar em redor dela, pedinchando:

- Minha avó, conte-me um conto...
- "Por via dos contos, trago a barriga cheis de pontos"...
- Está arrenegada connosco? - pergunta, com alguma preocupação, o pequeno.
E o neto mais velho, de caçoada, "conta":
- "Era uma vez, um velho, uma velha e uma cabra que fizeram uma cama de gaimões. Deitou-se o velho, não caiu a cama; deitou-se a velha, não caiu a cama; deitou-se a cabra, caiu a cama. Quem teve a culpa?"
- Tá quieta ruça... Ajeita a canga! Desse mal que eu o diga... - e continua:
- Minha avózinha, conte-nos um conto...
Intervém o mais velho, que pergunta:
-Ó minha avó, como é aquela adivinha das botas e dos sapatos?
A avó tira um gancho do cabelo e espevita a torcida da candeia, e ao mesmo tempo vai respondendo:
-Ó cabeça de alho chocho, nunca hás de aprender a contar nada! Ora ouve:

"Ó que lindos amores eu tenho!
Ó que lindos, ó que ingratos!
Andam por dentro das botas
E por fora dos sapatos."

- O que é? - pergunta o mais velho.
- São os meiotes! - responde de pronto o rapazinho.
- Não! Não!- Então o que é?
- Pensa lá melhor: são os...
- Ora! Sei lá! "Diz" lá tu, se queres...
- São os tornozelos, tosquinho... - adianta a avó.
O benjamim da familia volta à carga:
- Mas o que eu queria mesmo era um conto. Então, minha avó?
-"Antão era pastor, guardava gado"... Mas para vermos se te calas e se tens paragem, lá vai um conto (a que podemos chamar facécia) que leva um recado para ti... Ora ouve:

"Era uma vez um noivo que á mesa da boda deu por falta da esposada. E quando perguntou por ela, alguém lhe disse que tinha saído com a mãe, para irem ao tonel, destinado a servir de quarto ao novo casal. E como ela continuasse a demorar, o noivo, preocupado e contrariado com a desfeita, resolveu ir ao seu encontro.
Depois de caminhar uma centena de metros, passou a ouvir gritos de aflição, saídos do interior do tonel. Aflito, correu a bom correr, indo encontrar as duas mulheres desgrenhadas, banhadas em lágrimas e sofucadas pelos choros:
- Ai que desgraça tão grande! Ai que grande desgraça!
- Mas o que é que vos aconteceu? - perguntava, insistentemente. E a noiva, só passado algum tempo, a muito custo, conseguiu responder:"
"Or'olha: aqui, está a nossa arca da roupa; ali, a nossa cama e ao pé dela há-de ficar o berço do nosso filho, quando o tivermos... E se cai o batoque do tonel e mata o nosso menino? Não é uma desgraça?
E as duas mulheres continuaram em altos berros:
- Ai que grande desgraça a nossa! Ai que desgraça!
O rapaz não quis ouvir mais nada. Benzeu-se, desandou e foi caminhando, em busca duma terra onde não houvesse gente tão tola.

Ao entrar na primeira povoação, foi dar com uma mulher, junto à porta de casa, agarrando com grande afã uma cesta de asa, nos preparos de quem atira com alguma coisa para a rua. Ao vê-la assim tão afadigada, o nosso jovem perguntou-lhe o que estava a fazer, e ela, ofegante, respondeu:
- Nem imagina a minha consumição! Em chegando o fim da tarde, pranta-se-me uma escuridão cá dentro de casa, que não sou senhora de fazer coisíssima nenhuma! Passo tempos infinitos neste fadário, e não há meio de avantar com esta escuridão p'ró meio da rua!
- Olhe, sabe por que não vê bem agora dentro de casa? É porque chegou a altura de acender a candeia. Acenda-a e verá que já pode continuar com a lida da casa.
A mulher apressou-se a acender o candil e, daí a nada, veio à porta a desfazer-se em agradecimentos:
- Ó abendiçoado homem que me livrou de tanta mortificação!
Ele virou-lhe as costas, dizendo para os seus botões: - Esta ainda é mais lorpa do que a minha...

E continuou a caminhada, até que chegou a outro povoado e a primeira coisa que viu, foi um ajuntamento de mulheres, em altos berros, dando mostras de grande aflição. Aproximou-se e viu, no meio do ajuntamento, uma delas com a mão e o antebraço direitos metidos numa talha de barro, debruçada sobre ela uma outra mulher, de serra em punho, preparando-se para lhe serrar o antebraço. Com destreza, agarrou da mão que segurava a serra, e perguntou:
- Então, o que se passa?
- Ó homem! Então não está à vista de toda a gente esta grande desgraça? A infeliz meteu a mão na talha para tirar uma manadinha de azeitonas e, por mais força que faça, não há meio de a tirar dali p'ra fora. Por isso, não há outro remédio senão serrar-lhe o braço...
Assim que isto ouviu. o nosso homem deu um safanão no braço da mulher que, com o estremeção e a dor, acabou por abrir a mão, deixando cair as azeitonas. Foi fácil, depois, tirá-la de dentro da talha. As outras, quando viram aquele "milagre", desataram a gritar:
- É bento! O homem é bento!..."
Aturdido com a algazarra, fugiu a bom fugir de tanta brutidade. E foi então que resolveu regressar ao seu tonel, para junto da mulher que desposara.

Ia caminhando, convencido que todas as mulheres eram estúpidas, quando, a meio da tarde, ao passar junto de uma eira, deparou com os malhadores deitados à torreira do sol.
- Ó almas do diabo! A tarde a passar, o pão por malhar e vós aí, de barriga p'ró ar, à torreira do sol! Se não quereis trabalhar, ao menos, deitai-vos à sombra...
- Não podemos! - responderam, - Quando nos sentámos para merendar, ainda aqui fazia sombra. Depois, deitámo-nos, ensarilhámos as pernas umas nas outras, e aqui estamos neste castigo, sem atinarmos com as pernas de cada um.
- Ó trabalhos vos persigam, nunca nem agora! Esperai que eu vos ensino!
Dito isto, agarrou um mangual e desatou a malhar neles. E era vê-los, então, a fugir, de braços no ar, a pedir misericórdia.
Perante tudo o que vira desde que desertara, concluiu que a parvoíce não conhece sexo, nem fronteiras. Por isso, mais resoluto ainda, encaminhou-se, apressado, para o seu tonel, para junto da mulher que lá deixara."

- E depois? - Perguntou o pequeno.
- "Depois, morreram as vacas e ficaram os bois."
- Então qual era o recado que tinha para me dar?
- Não entendeste, mas eu explico-te: fica a saber que chochices, tanto as fazem e dizem as raparigas como os rapazes...
- E a si, quem lhe ensinou tantas coisas, minha avó?

- A maior parte do que vos tenho contado nos serões, aprendi-a com meu avô, Venâncio António Lindo, que morreu muito lúcido, e adorado por todos os netos, aos 99 anos; já teu pai (Josualdo José Quadrado) era nascido...
- Mas não conheço ninguém nas Mós com o apelido Lindo... - observou o mais velho.

- Pois não. Mas para não passares a noite a fazer mais perguntas, vou ensinar-vos os nomes dos meus pais e meus avós, que ainda eram vivos nos meus primeiros dez anos de casada.
Aquele vosso trisavô era originário de Sebadelhe, mas veio para as Mós ainda novo e aqui casou com Maria Preciosa Melchior e deles nasceu uma só filha, Maria Henriqueta Melchior Lindo. Esta veio a casar com Manuel António Ferreira (Ginja), filho de Francisco António Ferreira e de Maria Joaquina Morais. Deste casamento nasceram 6 filhos: Amélia Gracinda Ferreira, Maria Joaquina Ferreira, Lúcio do Nascimento Ferreira, José Joaquim Ferreira (mais conhecido por Zé Ginja), Joaquim Ferreira e Olímpia Augusta Ferreira (Olas). E estes 6 filhos, os respectivos pais e avô Venâncio vivíamos todos debaixo do mesmo tecto, comíamos à mesma mesa à qual, muitas vezes, se juntavam ou o meu tio Joaquim Alípio Ferreira, ou a minha tia Balbina Cândida Ferreira que morreu solteira, depois de levar muitos anos da sua vida a ajudar a criar os sobrinhos.

Minha mãe, sobrecarregada como estava com os muitos afazeres da casa, nunca poderia ter criado como criou os filhos que Deus lhe deu, sem a ajuda diária do meu avô e a colaboração quase constante da minha tia.
- E então o pai? - Perguntou o neto mais velho.
- O meu pai, em parceria com o irmão, era quem sustentava toda a família com a faina agrícola e, principalmente, com a compra, criação e venda de vitelos e de animais de carga. A presença do meu avô junto dos netos foi muito importante: aos rapazes, quando já andavam "à aula", ajudava-os nos deveres; e a mim, porque não havia escola feminina, ensinou-me a ler, no Céu esteja ele...
- Bem grande seria a casa, minha avó, para caber tanta gente? - tornou o mais velho.
- Sim era um casarão, abrangia aquela casa grande com balcão e alpendre onde agora moram o senhor Moutinho, a senhora Cândida e os filhos, e também nos pertenciam a casinha que fica antes e para cá, ao lado da capela, havia um pequeno palheiro, virado para o quinteiro, onde vosso avô (José Joaquim Quadrado), com a ajuda de alguns familiares, construiu esta casa, para virmos para cá morar, quando nos casámos, em 1901.

- Por fim a avó disse:
- "Vamos à deita, que está o sono à espreita"...
Queria dizer que chegara o fim do serão. Pedida e obtida a bênção, toca para a cama.
O rapazinho dorme com a avó, sentados na cama, benzem-se, persignam-se e depois deitam-se e passam a rezar as orações de todas as noites, a duas vozes:
Com Deus me deito,
Com Deus me levanto,
Com a graça de Deus
E do Divino Espirito Santo.
Que me Deus me cubra
Com o seu manto.
Se eu coberto for,
Não terei medo nem temor
Das coisas que más forem.
Se dormir, velai-me;
Se morrer, acompanhai-me,
Com as doze velas
Que estão a arder e arderão,
Na Casa Santa de Jerusalém,
Deus diante e paz na guia,
Entrego a minh´alma a Deus
E à Virgem Maria.
Segue-se um Padre-Nosso e uma Avé-Maria. Estas duas orações são em seguida, repetidas aos pares, por alma de cada um dos parentes defuntos mais chegados. Depois, rezam outro par pelas almas do Purgatório, principalmente pelas mais abandonadas.A finalizar, o responso em louvor do "vizinho" Santo António:
Santo António beato
Que em Lisboa fostes nato,
Na vossa Santa Casa
Fostes baptizado.
Pelo hábito que vestistes,
Pelo cordão que cingistes,
Três dias andastes,
Até que O encontrastes,
Jesus Cristo vos perguntou:
- Tu, António, aonde vais?
- Eu convosco quero ir.
- Tu comigo não irás,
Tu no mundo ficarás,
Quantas missas se disserem,
Todas tu ajudarás;
Quantas coisas se perderem,
Todas tu depararás.
Assim como livrastes a vosso pai
Das sete sentenças falsas,
Livrai-nos a nós de perigos e trabalhos
E das coisas que más forem.
Findam as rezas com mais um Padre-Nosso e uma Avé-Maria. Mas esta última oração já foi dita a uma só voz, porque o rapazinho adormecido, sonhava e via, como se fora num filme: Santo António e o Menino a ouvirem as preces dos vizinhos sorrindo com ternura. E por fim, ouviu, nitidamente, o Menino Jesus dizer:

- As orações e as preces da avó e do neto vão direitinhas para o Céu.

AS PESSOAS DA SANTÍSSIMA TRINDADE

Algumas vezes, as histórias que minha avó contava aos serões vinham a propósito dum qualquer dislate ou omissão sobre um qualquer assunto que, em seu entender, era merecedor de reparo. E as histórias de proveito e exemplo substituíam a repreensão directa, pois raramente nos ralhava.
Lembro-me de, num desses serões, ter cometido uma qualquer omissão sobre um assunto religioso.
Minha avó, longe de ser uma beata, era muito escrupulosa em assuntos morais e religiosos e, então, como quase sempre, a sua repreensão chegou através dum hipotético exemplo do que se não deveria ser ou fazer:
- Se continuares assim, pode vir a acontecer-te como o outro...
- Qual outro?
- O outro era um Zé muito mais crescido, mas desleixado como tu. E por ser assim, ouve agora a triste figura ele fez.
Depois de ter pedido em casamento a namorada, foram ambos chamados pelo padre, para saber se estavam religiosamente preparados para contraírem o casamento pela Igreja. Foram os três para a sacristia e o sacerdote disse:
- Como devereis saber, o matrimónio além de ser a realização da vossa vontade e um acto sagrado, é um sinal da vossa ligação a Deus, pois o casamento é um dos sete sacramentos. - E virando-se para o Zé, perguntou:
- Quais são os outros sacramentos da vossa vida?
Ele, corado pela atrapalhação, desculpou-se, dizendo:
- Bem, eu sei a doutrina toda, mas já me esqueci dos sacramentos, senhor padre.
- Não digas que sabes a doutrina... Pois tu raramente entras cá na igreja! Mas eu faço-te uma pergunta mais simples: Quantas e quais são as Pessoas da Santíssima Trindade?
- Ó senhor padre, lá saber o nome de todos não sei, mas parece-me que são sete!
O sacerdote, virando-se para a rapariga, disse:
- Tu sim, tenho a certeza que estás preparada para o grande momento que quereis realizar. Agora ele está muito longe de ser um bom cristão. Convence-o, ensina-o... Enfim, ele que faça uma preparação mínima, só depois vos casarei!
Quando saíram da igreja, a rapariga ralhou, gesticulando, com o namorado. Ele vendo que estavam a ser observados por outros homens, virou-lhe as costas e foi juntar-se a uns amigos que conversavam no Terreiro. Então, um dos rapazes que mais confiança tinha com ele, perguntou-lhe:
- Por que ralhava a Cândida contigo?
- Olha, foi por não saber, diante do padre, quantas e quais eram as Pessoas da Santíssima Trindade! Tu sabes?
- Sei! São três...
- Ah! Ah! Ah! Vai lá tu só com essas três pessoas, que o padre te fará as caridades... Eu atirei-lhe com sete, e ele mesmo assim achou que eram poucas e mandou-me bugiar!...

A VENTURA DE ME CHAMAR JOSÉ

- Ó minha avó, há tantos "Josés" na família! Meu avô era José Joaquim, meu padrinho era José Joaquim, meu pai Josualdo José e eu...
- E então? O que é que queres dizer com isso?
- Ora! Queria que me tivessem "posto" Jorge, por exemplo, e não também José Joaquim!
- Pois olha, não há nome mais bonito nem mais valioso do que José, ora ouve.
Era uma vez um homem que vivia numa aldeia e que só era conhecido por José, não só por ser este o seu nome, mas também por que toda a gente lhe conhecia o hábito: quando alguma coisa lhe corria mal ou alguém o contrariava, em vez de rogar pragas ou dizer "brutidades", apelava: - Ó valha-me São José! Ou então, quando alguma coisa boa lhe acontecia, erguia as mãos para o céu e murmurava: Bem-haja, meu abendiçoado padrinho!
Além de respeitador e amigo de ajudar o próximo, era muito trabalhador, pois enquanto outros iam para as tabernas, ele trabalhava o dia inteiro, incluindo muitos domingos e dias santos de guarda, para que nada faltasse à mulher e aos filhos.
Quando morreu, apresentou-se às portas do Céu, por julgar que tinha lá um lugar. Mas veio São Pedro ao seu encontro e disse-lhe, torcendo o nariz:
- Não podes cá entrar! Tu sabes bem que guardar domingos e festas de guarda é o 3º dos dez Mandamentos de Deus. E já te esqueceste que na maioria dos domingos e dias santos de guarda não ias à missa, nem te confessavas...
- É verdade, confesso! Faltei muitas vezes a esse mandamento, porque vim duma família muito pobre, o que me obrigou a passar a vida inteira a trabalhar, para que nada faltasse aos meus. Mas não me pesam na consciência outros pecados. E para minha testemunha peço-lhe, por amor de Deus, que chame à nossa presença o sempre por mim louvado S. José.
- Pediste-me por amor de Deus, não posso recusar-te este pedido. Espera um pouco que eu vou chamá-lo.
Quando São José chegou junto dele, ajoelhou e pediu:
- Dei-te a sua bênção, meu sempre adorado padrinho.
São José ajudou-o a levantar-se e ele contou-lhe a conversa que tivera com o santo portador das chaves do Céu.
No fim, ouviu a conversa entre os dois santos:
- Ó Pedro, deixa lá entrar o simples e bondoso homem!
- Não posso, São José...Ordens, são ordens!
- Mas eu também tenho aqui algum poder!
- Pois sim, mas não pode obrigar-me a deixar entrar aquele pecador. Ele que vá para o Purgatório.
- A maneira canseirosa e bem comportada como levou a vida, dão-lhe o direito de entrar no Céu. Por isso mais uma vez te digo: Deixa entrar o bom do homem!
- Não insista São José. Não me pode obrigar...
São José, interrompendo-o, disse:
- Não posso! Então vejamos: Se ele não entrar, saio eu, o resto da Sagrada Família, com a rainha do Céu saem santos, anjos, arcanjos e os apóstolos ... E assim o Céu ficará vazio!
- Convencido, São Pedro disse:
- Está bem, o homem que entre.
E minha avó rematou:
- Vês, meu filho, a ventura que podes ter por te chamares José. Mas é preciso que sejas sempre bem comportado!

AS PALAVRAS BEM BOAS SÃO...

Quando [à minha Avó] lhe pedíamos que nos contasse um conto, por vezes ouvíamos uma história que nos alertava para as deslealdades dos falsos amigos. A este propósito lembro-me da seguinte fábula:
"Havia uma raposa que costumava caçar numa determinada quinta. Um dia, encontrou-se com o dono da propriedade e estabeleceu com ele o seguinte pacto: ela obrigava-se a caçar coelhos, ratazanas e toda a bicheza que prejudicasse as culturas da quinta; em contrapartida, o lavrador comprometia-se a dar-lhe guarida e protecção quando fosse acossada por algum caçador.
Passado algum tempo, a raposa apareceu, esbaforida, a pedir protecção, pois estava a ser perseguida por um caçador. Ao vê-la tão aflita, o lavrador abriu-lhe a portelo do cortelho que estava mais próxima para ela ali se esconder.
Passados alguns instantes, apareceu o caçador a perguntar ao proprietário se não vira passar por ali uma raposa. Este, ao mesmo tempo que dizia em voz alta: - Não! Não a vi!... - Apontava com o indicador para o cortelho.
A raposa abrindo a portinhola, disse com o maior dos desalentos:
- As palavras bem boas são lavrador...O pior, são os acenos!"
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Só podem terminar as amizades que não foram verdadeiras.

FLORILÉGIO DE PROVÉRBIOS

De nada duvida quem nada sabe.

Não digas o que sabes, sem saberes o que dizes.

Debaixo da boa palavra, se esconde o engano.

É pior fingido amigo, que declarado inimigo.

Onde falecem as verdades, prevalecem os enganos.

Contas de grão capitão: para si o melhor quinhão.

A quem tem muito, dão-lhe mais.

Casos há para que a Lei não dá.

Quem aplica a justiça, deve teme-la.

Estômago vazio não tem ouvidos.

Quando um não quer, dois não batalham.

A dormir não se alcançam vitórias.

A quem dorme ou preguiça, não acode a justiça.

Antes de mil anos, todos seremos brancos.

Quem é descuidado é sempre necessitado.

O freio do bom é o amor e o do mau é o temor.

A ambição enche a cabeça e cerra a razão.

O carácter verdadeiro não se avilta por dinheiro.

De cunhado nunca bom bocado.

Não são as pulgas do cão que fazem miar o gato*

Bem folga o lobo com o coice da ovelha.

Asno contente, vive longamente.

Tem gosto o burro em ouvir o seu zurro.

Não há melhor mostarda do que a fome.

A cada um o que é seu.

A lagartixa é que sabe por que não gosta da vara.

Filho de burro pode ser lindo, mas um dia dá coice.

A avareza é madrasta de si mesma.

A boa caridade começa em casa.

Antes burro vivo que sábio morto.

As grandes dores são mudas.

Cada qual sabe onde o sapato lhe aperta.

Quando o arrais canta, bem vai o barco.

Pedra bolida não cria musgo.

Quem faz força é o boi, quem geme é o carro.

Quem anda depressa, não enxerga o que procura.

Quem não sabe fingir, não sabe reinar.

Arte de agradar, arte de enganar.

Podes perder por preguiça, o que ganhas por justiça.

Quando vem a glória, vai-se a memória.

O asno aguenta a carga, mas não a sobrecarga.

Antes filho de pobre que escravo de rico.

Farta-te gato, que é dia de Entrudo.

Galo bom, nunca foi gordo.

Mais quer o menino à mãe que o amima,
do que ao pai que o doutrina.

Quem vive de esperanças, morre de desenganos.

É da proibição que nasce a tentação.